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"Um banho de vida" - algumas braçadas de humanidade

  • Foto do escritor: Suzana Lopes
    Suzana Lopes
  • 26 de jun. de 2021
  • 4 min de leitura

Comédia francesa na Netflix aborda a depressão entre os homens e joga com os fracassos da masculinidade padrão.


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"Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo"


São com esses famosos versos que Álvaro de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa, poeta português) inicia um de seus poemas mais conhecidos, chamado Poema em linha reta. Projetando a pisada unidimensional e Ideal dos semi-deuses - que nunca levaram porrada na cara e nem pisam em falso -, a linha reta é aquela que transmuta cada curva em equívoco, e todo equívoco em tortuoso ridículo. Não por acaso, é também pela geometria que tem início o filme francês "Um banho de vida" (de Gilles Lellouche, 2019, disponível no catálogo da Netflix), com uma curiosa narrativa a respeito das formas: o círculo e o quadrado.


Numa sequência de imagens exibidas, o círculo é eleito como a forma das coisas espontâneas e fluídas da vida (a forma do ventre das gestantes, os óculos redondos da mulher amada, os discos e as rodas das bicicletas), em detrimento da dureza e solidez das quadradas (a moral cristã, a educação formalista quadrada, os óculos da mulher que rompe o relacionamento, os cubículos dos escritórios).

É então que o narrador fala sobre uma questão dita indiscutível: a dificuldade de encaixar um pino quadrado em um buraco de forma circular e vice-versa.


A partir desse prólogo, corta para a cena de um café-da-manhã em família. O casal de meia idade à mesa, junto dos filhos adolescentes. A imagem tradicional é interrompida quando o homem pega um punhado de antidepressivos e mistura todos os compridos numa tigela com leite e sucrilhos. É assim que, saindo os filhos para a escola e a esposa para trabalhar, Bertrand é apresentado como um sujeito desempregado, que passa os dias jogando Candy Crush de bermuda e meias em casa, em tratamento para depressão há anos.


Ao buscar a filha numa aula de natação, Bertrand encontra um folder na parede que prende sua atenção: uma chamada para formação de uma equipe masculina de nado sincronizado. Ele vai até o treinamento e encontra um grupo de homens e suas particularidades, de modo que a perspectiva é deslocada do personagem inicial para acompanhar cada um desses personagens e os momentos de interação do grupo.


Assim são apresentados o homem turrão bem sucedido, mas emocionalmente inábil, que não consegue articular dois minutos de conversa com o filho adolescente; o adulto "virgem" que, aos quarenta e poucos anos, teve quase nula experiência sexual com mulheres - e tampouco se relaciona com outros homens; o conquistador barato, vivendo de esconder a falência profissional e amorosa; um músico talentoso de reconhecimento nulo, que toca guitarra em bingos de idosos; e a treinadora da equipe, uma esportista aposentada e antiga alcoolista, que credita a cura do vício a uma paixão platônica por um homem casado.


Nomeando-se como um grupo de fracassados, o efeito do filme se faz justamente por dar uma exibição escancarada, e em alguns momentos até patética, ao fracasso da imagem masculina idealizada, assim como ao fracasso da concepção da chegada de um ponto de realização da vida adulta que fosse estável e unívoco - esse trecho da linha reta no qual magicamente não tomariam parte as crises sociais, políticas e econômicas tão explosivas à nossa época, as alterações do envelhecimento e do adoecimento, as crises matrimoniais e os conflitos geracionais entre familiares.


Configurando um tipo de equação que nunca fecha e sempre deixa resto, a tentativa de encaixar um círculo em um quadrado - ou seja, a dificuldade de fazer caber em linhas retas a dispersão dos conteúdos que particularizam e que fazem a vida dos homens - geralmente assume dois desfechos para aqueles que tentam resolvê-la com mais radicalidade. Por um lado, a dimensão da impotência dos que se paralisam por nunca estar à altura do imperativo obtuso do que deveriam ter sido; doutro lado, a questão também alcança aqueles que se desnorteiam quando notam a condição de nunca se apaziguarem em alguma comunhão consigo e se depararem com certo gosto de coisa-nenhuma perante as conquistas feitas.


Há, com certeza, desfechos bem piores, mas o ponto de maior dificuldade aqui é fazer notar um termo que geralmente passa despercebido aos que estão muito afincados em fazer valer a repetição da forma: não se tratando de uma questão de menor ou maior esforço empreendido para alcançar o Olimpo, trata-se do reconhecimento e da desconfiança diante da própria lógica que, ao prometer uma satisfação ideal, por princípio, nasceu quebrada.


Em detrimento da resignação ou da negação perante o fracasso, é pela introdução de uma outra forma que "Um banho de vida" cai muito bem: ou seja, pela introdução da forma do deslocamento. Neste caso, dar algumas braçadas por aí junto desta possibilidade de vida que chega pela piscina e pela socialização entre esses homens, seja o fazendo de modo mais leve ou mais proposital. Uma realização modesta, mas feita aqui com muita graça.


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3 Kommentare


Vanessa Lima
Vanessa Lima
14. Jan. 2022

Que texto excelente e um bom convite à reflexão e a assistir o filme. 🙏

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Mírian Nara Lopes
Mírian Nara Lopes
28. Juni 2021

Muito interessante! Agora pretendo assistir o filme!

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Suzana Lopes
Suzana Lopes
28. Juni 2021
Antwort an

Obrigada, Mírian

Bom para rir e sorrir esse,

Abraço!

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Suzana Soares Lopes.

Clínica de psicanálise.

Atendimento virtual e atendimento presencial em São Paulo (SP); adultos, adolescentes e crianças.

(11) 97068-4072 

lopes.suzanasoares@gmail.com

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