Like a virgin
- Suzana Lopes
- 16 de out. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 17 de out. de 2020
Tocados como uma primeira vez: a sempre virgindade perante o orgasmo

Há uma bonita cena escrita por Gabriel Garcia Márquez, em um conto que aparece na coletânea dos Doze contos peregrinos. Trata-se de uma cena curta: um jovem casal janta à mesa, quando seus olhares se cruzam. Na expectativa criada e confirmada desses dois olhares, sem qualquer troca de palavras que os acompanhem, eles se interrompem e pousam os talheres sob a mesa. E então, eles fazem isso juntos - e é apenas isso, o sexo.
Que possamos notar como a presença de um olhar possa ser aceita, esse "sim" dirigido a uma parceira ou um parceiro, seja na condição de um encontro casual ou na extensão de um relacionamento já firmado: esse "sim" que consente duplamente, seja para com a presença do desejo que nos toca no ponto no qual um outro é mensageiro - e que também consente com o desejo do outro diante do qual somos, eventualmente, portadores. Eis aí um ponto.
Um tanto distinto da expectativa de uma suposta naturalidade que guiaria as relações amorosas e sexuais, ou mesmo da exacerbação sexual orientada por uma infinita lista de objetos de consumo – incluindo os próprios sujeitos forjados como objetos a serem consumidos num mundo fictício em que todos, obviamente, poderiam gozar (caso tenham ou sejam o objeto correto) -, há muitas situações que correm e que tocam na confusão e complexidade desses dois “sim”. Ou seja, um “sim” que consente para a possibilidade de vida que habita em cada um de nós, um “sim” que pode receber e achegar o que toma a forma da fruição da vida no outro.
Há quem, que pode ou não conviver em relacionamentos ditos amorosos, desconhece ou passa batido por essa confusão: posto que em algum momento cedeu da indeterminação do encontro em nome da amizade, da família, da religião, da masturbação, entre outras causas. Não que essas causas não poderiam ser eleitas em uma posição de respeito com a cultivação da vida; trata-se mais de quando causas são eleitas justamente pela condição de que tudo permaneça no mesmo lugar, fixado no simbólico como um cadáver. Fica apenas uma vaga culpa, até que, eventualmente, um dia a culpa pode se cristalizar no pânico.
Há também aqueles que são muito desconfiados quanto a possibilidade de consentir consigo mesmos, então produzem um modo de conquista manca, fraca, que geralmente decepciona por não mostrar ao outro a autenticidade e o ânimo do que viria causar. Fica, é claro, também difícil conceber que um outro possa se interessar. São dois termos contraditórios em uma sentença, como se pudéssemos unir em um mesmo tempo os dois atos daquelas crianças que dizem “eu gosto muito de você”, então enrubescem diante do que disseram, disparam e saem correndo. Que essa criança possa tentar, ou, que essa criança de outrora possa transparecer nos adultos mais encerrados, já é algo digno de nota, visto que há uma tentativa interpolada de encerrar o silenciamento.*
E então, a brutalidade mais comum, quando se diz “sim” a si mesmo e “não” ao outro. Ou seja, um “sim” a imagem de si, no modo que nos reconhecemos e fomos criados, um “não” ao outro, na medida em que esse semelhante possa ser silenciado em sua diferença, quando a vida alheia é assimilada unicamente enquanto sirva como um personagem reduzido à métrica de nossa própria versão de vida.
Brutalidades horrendas tomam forma nesse modo de posição, tão ordinária e tão constitutiva a quase todos. Uma longa série de voracidades, de vitimismos e de benevolências tirânicas, de iniciativas masturbatórias que se realizam de modo acompanhado, enfim. É possível levar uma vida toda assim, quando não ocorre algum tipo de acidente. Geralmente, o acidente não envolve reconhecer o que até então da vida de outrem foi possível ceifar ou ignorar, mas que um outro acabe por nos produzir um tipo de perda: a perda que toca que nem sempre somos esperados da maneira como julgamos ser amados, no mesmo lugar onde a cegueira à diferença dos semelhantes é tecida.
Bem, mas então, há um terceiro “sim”. Esse “sim” toca em um consentimento bem mais íntimo, tanto porque não é exatamente consciente. É um outro ponto - e toca na questão de que muitas pessoas chegam hoje até as clínicas e consultórios devido ao sofrimento diante da dificuldade ou total impossibilidade de gozar; ainda que sintam e conheçam o desejo e a excitação por uma parceira ou um parceiro e não possuam qualquer outra condição (orgânica, medicamentosa, sequelas de doenças, entre outros) que os impossibilitaria no ato sexual.
Há o trecho de um caso mencionado numa coletânea, no qual uma psicanalista recebe um rapaz que costumava se programar para atender ligações enquanto estava em um encontro com uma moça; tratava-se de uma moça de quem ele, assumidamente, gostava. A intenção era, portanto, contar com a possibilidade de encontrá-la, ao mesmo tempo que esse encontro sexual pudesse ser, em parte, interrompido pelas ligações recebidas, conforme seu planejamento. A dificuldade desse “sim” – o sim ao orgasmo - ocorre porque está ligado não apenas ao desejo mobilizado perante alguém, mas também, porque seria preciso às vezes “desligar”. Uma pequena morte, como é dito desse efeito numa outra língua.
A insistência de ser sempre igual a si mesmo, esse modo de rigidez que ora controla, ora se enche de repulsa diante de uma novidade, reduzindo o que não pode ser controlado à ignorância, implica que há um modo de consentimento que o orgasmo coloca, que poderia ser colocado do seguinte modo:
No que consinto que a minha vida prossiga?
Será pela repetição dos termos que já conheço e que se evidenciam à medida que penso? Ou, será pela minha própria dissolução em entrega a um Outro lugar, cuja consequência desconheço?
Como uma viagem a um canto estrangeiro, onde se perde a condição de estar em um lugar conhecido para, eventualmente, poder passear em outras ruas e escutar outras palavras, é pela possibilidade do orgasmo que as pessoas podem ser contadas novamente como virgens - tocadas por essa estranha espontaneidade paga com a morte de sua própria identidade, e que celebra a explosão da vida chegada como uma primeira vez, a cada vez.
* O texto traz a referência a Alain Didier-Weill, psicanalista francês que escreveu sobre as modulações do sim frente à sideração ao trauma originário da linguagem, em seu Três tempos da lei, de 1997, publicado no Brasil pela Zahar.
** "Like a virgin", canção interpretada por Madonna, foi na realidade composta por dois homens: Billy Steinberg e Tom Kelly.



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